domingo, 13 de fevereiro de 2011

a importância das narrativas infantis-ed Abril

A importância das Narrativas Infantis




Ao construir narrativas, a criança brinca com a realidade e encontra um jeito próprio de lidar com ela
Viagens supersônicas a planetas distantes. Lutas com gorilas. Bebês que sobem sozinhos no lustre. Cenas como essas só acontecem em filmes, livros e desenhos animados - ou na fala de uma criança pequena que conta sobre sua vida. Ficção e relato de experiências vividas são gêneros diferentes, mas, nos primeiros anos de vida, é comum que se combinem nas narrativas infantis, como apontou a linguista Maria Cecília Perroni no livro Desenvolvimento do Discurso Narrativo. Segundo ela, no entanto, esse recurso não deve ser entendido como um problema de falta de clareza entre o real e o imaginado. Ao contrário: é preciso encará-lo como um dos elementos mais importantes para o desenvolvimento cognitivo e afetivo dos pequenos. O que se testemunha nesse tipo de construção é justamente o nascimento do discurso narrativo - uma das principais estruturas de expressão de qualquer pessoa e uma essencial troca comunicativa.
Esse processo - que se estende até a idade adulta - começa antes mesmo de a criança conseguir falar. Nesse período, ela já é capaz de entender as histórias contadas pelos adultos e o contato com relatos cotidianos ou contos de fadas, por exemplo, faz com que, aos poucos, adquira um repertório de imagens, nomes e roteiros de ações que utilizará mais tarde. Também a compreensão dos usos e do funcionamento da linguagem tem início nessa fase, com o adulto como modelo da forma de se comunicar e como voz da cultura em que está inserida. Assim, quando conquista condições fisiológicas de falar e passa a descrever com palavras um encadeamento de ações que se desenrolam no tempo - uma possível definição de narrativa -, ela acessa todos esses diferentes repertórios acumulados desde os primeiros meses de vida.
Adquirir a fala, por sua vez, é um passo transformador em termos cognitivos, uma vez que é a linguagem que organiza o pensamento. "O pensar não se estrutura internamente, mas no momento da fala", explica Maria Virgínia Gastaldi, formadora de professores do Instituto Avisa Lá, de São Paulo. "A narrativa (primeira estrutura da oralidade com que a criança tem contato em seu cotidiano) é, portanto, o que modela e estimula a atividade mental." A oralidade é, dessa forma, um dos principais motores do desenvolvimento na primeira infância e aspecto-chave da creche e da pré-escola.
A postura do professor ou da família na interlocução com os pequenos, por sua vez, faz toda a diferença. "O ideal é que ele seja um verdadeiro co-construtor das narrativas, incentivando a criança a avançar nos recursos que utiliza em suas construções", diz Maria Virgínia. "As limitações linguísticas nessa fase são importantes e o adulto deve não só escutar o que ela diz mas também reconhecer sua intenção comunicativa e ajudá-la a expressar-se melhor." Assim, se na hora de recontar a história de um livro conhecido - sobre um personagem que tem medo de ir ao dentista, por exemplo -, a criança diz "o dentista lavou meu dente" (remetendo-se a uma experiência dela mesma, real ou imaginada), o professor pode perguntar se aquilo aconteceu com o personagem do livro também, como é o nome dele, o que ele sentiu quando estava no dentista, o que aconteceu depois etc. Essa co-construção é o chamado "jogo de contar" - situação básica de aprendizagem quando o assunto é oralidade e que envolve uma relação de cumplicidade entre a criança e seu interlocutor.

Em rodas de conversa, é muito comum que os pequenos comecem contando sobre o passeio que fizeram ao zoológico com a família e terminem narrando como quase caíram na jaula do leão ou como o irmão se perdeu e não foi mais encontrado. Esses "causos" têm ligação com a presença do faz de conta no pensamento infantil e a maneira de apreender o mundo e elaborar os sentimentos, que é uma característica marcante nessa faixa etária. "A criança brinca com sua realidade, extravasando-a para experimentar outros papéis e situações", diz Gilka Girardello, professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Segundo ela, ao fazer isso, os pequenos articulam imagens do repertório que conquistaram ao longo de sua vida para explorar futuros potenciais. A criação de papéis e situações de faz de conta nas brincadeiras ("Eu era herói, você, o monstro" e "Eu era a mãe, você, a filhinha") assume a forma de simbolização nas narrativas infantis ("Meu irmão mais velho começou a se afogar e meu pai pediu que eu o salvasse", dito por uma criança de 3 anos, por exemplo).
Para o psicanalista e pesquisador da infância Donald Winnicott (1896-1971), as simbolizações se enquadram no que ele chamou de espaço potencial. "Trata-se de uma área de experiência em que os pequenos podem brincar com a realidade, em que dão um sentido pessoal aos elementos do ambiente e os elaboram à sua maneira para com eles poder lidar", explica Ana Paula Stahlschmidt, doutora em Educação e estudiosa da obra do pesquisador. Esse espaço potencial, segundo Winnicott, deve ser garantido pelo adulto para que o pequeno dê liberdade à sua criação - não apenas artística, mas como uma forma autêntica de encarar a vida.

Se, por um lado, fica claro que a criança precisa brincar com os elementos de seu repertório - sem ser reprimida por não estar contando "a verdade" sobre o passeio ao zoológico -, por outro é preciso cuidar para que ela tenha matéria-prima para fazê-lo: um repertório de histórias diversificado. O contato com relatos de experiências nos grupos em que circula (na fala de adultos e também de outras crianças) e com textos literários (lidos e contados) é fundamental para ela se familiarizar com os aspectos estruturais da narrativa, como marcadores de tempo e espaço e a contextualização de situações.

Situações vividas, imaginadas ou presentes em histórias
ouvidas se misturam nas narrativas infantis
"Também o elemento da dramatização é incorporado pelos pequenos no contato com narrativas", diz Lélia Erbolato Melo, linguista da Universidade de São Paulo (USP). "Eles vão percebendo e incorporando os ingredientes que tornam as histórias interessantes, como a ação, os conflitos e o inesperado, e trazem isso para aquelas que contam." Além disso, o acesso a textos tem um papel importante no amadurecimento afetivo dos pequenos, garantindo que ampliem seu universo de experiências para além do que podem observar no seu cotidiano. "Ao ouvir histórias, a criança cria hipóteses sobre como se sentiria se estivesse frente aos mesmos dilemas e situações do personagem", diz Gilka. "Para os menores, é natural que essa vivência, tão forte, seja incorporada às narrativas que constroem na forma de casos."

A distinção entre ficção e realidade ainda está em desenvolvimento nos anos da Educação Infantil - um aspecto que sempre deve ser considerado nas conversas com os pequenos. Isso se relaciona com uma das características mais vivas do pensamento da criança: o sincretismo, ou seja, a liberdade de associar elementos da realidade segundo critérios pessoais, pautados principalmente por afetividade, observação e imaginação.

É comum, quando se lê uma história como Chapeuzinho Vermelho, que uma criança interrompa para dizer que "a avó também mora perto de uma floresta" ou que ela "viu um cachorro na casa do vizinho" (no momento em que o lobo surge no texto, por exemplo). Quando assume o papel de narrador, essa flexibilidade de fronteiras entre experiência pessoal e situação imaginada se mostra tanto nos relatos reais como nas histórias ficcionais. "O mais comum e saudável é que a criança misture realidade e ficção para mais tarde separá-las", diz Maria Virgínia. Segundo a especialista, o adulto não deve questionar se o que ela conta é verdade ou invenção, mas embarcar na aventura e pedir mais detalhes. "Em muitos casos, ela vai rir ou dizer que o adulto já sabe que aquilo não é verdade." Em geral, a inquietação do professor vem do medo que isso se fixe como um padrão de comportamento - em outras palavras, que a mentira se torne uma constante na vida futura. "Os jogos de contar e a experiência com os usos sociais de comunicação são suficientes para a criança se ater cada vez mais aos fatos 'vividos' em seus relatos", afirma Maria Virgínia.

O único cuidado essencial ao professor é não tirar conclusões precipitadas sobre as narrativas. O aluno falar de uma briga violenta, por exemplo, não quer dizer que isso aconteça na casa dele. "Não é possível saber a quem as crianças se remetem com seus personagens", diz Ana Paula.
Fonte: Revista Escola Abril

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Alfabetização literária



Apesar de, através dos séculos, a maioria das pessoas ter tido um acesso limitado à língua escrita, os textos sempre desempenharam um papel vital na história humana não só em termos do conteúdo, mas também da forma. A escrita revela a natureza das relações sociais na comunidade e cultura que os produz e usa como aspecto fundamental dessas mesmas relações. A natureza de um texto religioso no século XIV revela a estrutura social, cultural e religiosa da época. O mesmo acontece com uma mensagem de e-mail enviada entre colegas de trabalho numa companhia de seguros.
“A comunicação escrita é um acto fiduciário entre autores e leitores no qual ambos se tentam orientar continuamente visa-vis um estado anticipado de convergência entre si”.
“Todos o textos são “escritos” tanto pelo escritor como pelo leitor.”
A possibilidade de comunicação via textos é mais do que a capacidade de leitura de símbolos linguísticos numa página. O que um texto simplemente diz e o que comunica socialmente podem ser realidades e ideias completamente distintas. O intercâmbio real entre um autor e um leitor é baseado num passado social e cultural partilhado. Ler um texto e interpretá-lo são duas realidades e experiências diferentes. Saber “ler” não.

Acesso social, práticas educativas e mudanças teórico-pedagógicas...significa “saber ler.” Sem a interpretação contextualizada no tempo e espaço, a comunicação ocorre somente num nível superficial, se de todo. A menos que o termo e conceito de alfabetização venham a ser alargados para se referir também a um tipo de alfabetização cultural e social, este termo não pode ser considerado sinônimo de literacia.

A literacia é o uso de prácticas situadas no contexto social, histórico e cultural que nos permite criar e interpretar significados através do uso de textos. (Por esse motivo a literacia) pressupõe pelo menos o conhecimento das relações entre as convenções textuais e os contextos em que são usadas e, idealmente, a capacidade de reflectir de forma crítica sobre essas relações. Como está ligado a objectivos claros, a literacia é dinâmica – não estática – e varia de uma comunidade discursiva e cultural para outra. (A literacia) chama a si uma grande variedade de aptidões cognitivas e conhecimentos da língua escrita e falada, do conhecimento de géneros e de conhecimento cultural

Os símbolos linguísticos que nos permitem registar conteúdos são prerequisitos essenciais para a literacia, não são, contudo, o seu expoente máximo.
“A literacia tem que ver, acima de tudo, com a linguagem e o conhecimento da forma como é usada, e só secundariamente com os sistemas da escrita”.
Cada indivíduo tem um discurso primário, aquele que aprendeu na sua cultura familiar e no grupo em que se insere. Além desse sistema familiar e comunal do seu discurso primário, cada um geralmente aprende discursos secundários ligados às instituições sociais em que se movimenta – escola, local de trabalho etc. Cada discurso dentro de cada comunidade é sempre ideológico e resiste à crítica interna enquanto, ao mesmo tempo, se opõe a outros discursos e atribui valor a certas coisas a custo de outras, estando, assim, ligado à distribuição de poder e à hierarquia estrutural da sociedade.

Quando uma pessoa, embora participe numa comunidade primária e tenha um discurso primário, se
encontra à margem da organização social mais lata, tal sentido de falta de poder limita a sua capacidade de participação literata nessa mesma sociedade.
Por óbvias que as afirmações prévias pareçam, na realidade, só recentemente se começou a conceber de forma coerente a natureza verdadeiramente generativa e social dos textos, especialmente no que se refere ao seu ensino e didáctica. O conceito de alfabetização – anterior ao conceito de literacia e teoricamente ligado a conceitos comportamentalistas e cognitivos de independência de acção do aprendente no processo de aprendizagem – tem sido “executado” através do ensino dos processos línguisticos irredutíveis da leitura e da escrita. Independentemente da esfera social onde circula e existe, e sem esse entendimento, a aprendizagem torna-se um processo alienatório para muitos dos aprendentes.

Tradicionalmente, a didatização das atividades para o ensino da leitura e escrita na escola cristalizou-se como uma linguagem estranha aos alunos, falantes nativos da língua portuguesa que nem sempre percebiam as práticas pedagógicas como extensão ou possibilidade efetiva do seu dizer. Longe de atender as necessidades do indivíduo, de desenvolver e ampliar os seus modos de expressão e interação, ou ainda, de alimentar o desejo de aprender, ensinava-se uma língua que, de fato, não era a dele; impunha-se uma relação como as letras incompatível com o seu mundo, e, portanto, a revelia do próprio sujeito.

Sem o entendimento e valorização das comunidades e discursos primários dos aprendentes, e porque não assenta naquilo que eles já conhecem rumo àquilo que podem vir a conhecer, a aprendizagem das letras é vazia e conduz a situações de rejeição por parte dos aprendentes, os quais se tornam, então sim, resistentes a esforços de alfabetização no seu sentido mais básico.Em vez disso, a aprendizagem da literacia pode e deve ser feita com as literacias primárias dos aprendentes – formas legítimas de expressão social do seu repertório, sejam elas quais forem – como ponto de partida. A escola é somente um dos muitos aspectos da participação social. Os alunos têm as suas vidas próprias fora do contexto da escola em que muitos desempenham já papéis muito relevantes nas suas comunidades primárias. Os professores, em vez de tentarem “converter os nativos” e “abrir as comportas da verdade”, a qual, condescendentemente, partilham com os seus alunos, devem, sim, tornar-se observadores atentos e tentar, de facto, conhecer os alunos a quem querem ensinar.

Quando a escola se integra primeiro no sistema social dos alunos e os ajuda a analisar e entender os seus discursos primários, a possibilidade de ensinar práticas literatas da sociedade alargada aumentam significativamente.

magda soares

A REINVENÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO
A outra via, ou porta de entrada, consiste em desenvolver as
práticas de uso dessa técnica. Não
adianta aprender uma técnica e
não saber usá-la. Podemos perfeitamente aprender para que serve
cada botão de um forno de
microondas, mas ficar sem saber
usá-lo. Essas duas aprendizagens
– aprender a técnica, o código
(decodificar, usar o papel, usar o
lápis etc.) e aprender também a
usar isso nas práticas sociais, as
mais variadas, que exigem o uso
de tal técnica – constituem dois
processos, e um não está antes do
outro. São processos simultâneos
e interdependentes, pois todos
sabem que a melhor maneira para
aprender a usar um forno de
microondas é aprender a tecnologia com o próprio uso. Ao se
aprender uma coisa, passa-se a
aprender a outra. São, na verdade,
processos indissociáveis, mas
diferentes, em termos de processos cognitivos e de produtos, como
também são diferentes os procesconvencional da leitura e da escrita e das relações fonema/grafema,
do uso dos instrumentos com os
quais se escreve, não é pré-requisito para o letramento.
Não é preciso primeiro aprender a técnica para depois aprender
a usá-la. E isso se fez durante
muito tempo na escola: “primeiro
você aprende a ler e a escrever,
depois você vai ler aqueles livrinhos lá”. Esse é um engano sério,
porque as duas aprendizagens se
fazem ao mesmo tempo, uma não
é pré-requisito da outra.
Mas, por outro lado, se a alfabetização é uma parte constituinte
da prática da leitura e da escrita,
ela tem uma especificidade, que
não pode ser desprezada. É a esse
desprezo que chamo de “desinventar” a alfabetização. É abandonar,
esquecer, desprezar a especificidade do processo de alfabetização. A
alfabetização é algo que deveria
ser ensinado de forma sistemática,
ela não deve ficar diluída no processo de letramento. Acredito que
essa é uma das principais causas
do que vemos acontecer hoje: a
precariedade do domínio da leitura e da escrita pelos alunos. Estamos tendo a prova disso através
das avaliações nacionais. O último
SAEB mostrou um resultado terrí-
vel: aproximadamente 33% dos
alunos com quatro anos de escolaridade ainda são analfabetos.
Quais são as causas dessa
perda da especificidade da alfabetização? É muito difícil analisar os
fatos recentes, por um lado, por
estarmos participando do processo; por outro, temos de fazê-la porque a questão é grave. Não podemos deixar esses milhões de alunos, crianças e jovens, saírem da
escola semi-alfabetizados, quando
não saem analfabetos.
O que poderíamos levantar
como hipótese? Primeiro, uma
concepção de alfabetização que,
coincidentemente, chegou ao País
na mesma época que o conceito de
letramento, nos anos 80; segundo,
uma nova organização do tempo
da escola, que consiste na divisão
em ciclos, trazendo junto a questão da progressão continuada – da
não-reprovação.
Essa concepção de alfabetiza-
ção está, de certa maneira, associada ao construtivismo. Não
estou afirmando que essa concep-
ção seja errada, mas a maneira
como ela se difundiu no sistema é
sos da alfabetização e
mento.
Que significa isso?
do letraSignifica
que a alfabetização, aprendizagem
da técnica, domínio do código
1 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.9 n.52 • jul./ago. 2003que pode ser uma das causas da
perda de especificidade do processo de alfabetização. A mudança
conceitual que veio dos anos 80
fez com que o processo de construção da escrita pela criança passasse a ser feito pela sua interação
com o objeto de conhecimento.
Interagindo com a escrita, a crian-
ça vai construindo o seu conhecimento, vai construindo hipóteses a
respeito da escrita e, com isso, vai
aprendendo a ler e a escrever
numa descoberta progressiva.
O problema é que, atrelada a
essa mudança de concepção, veio
a idéia de que não seria preciso
haver método de alfabetização. A
proposta construtivista é justa,
pois é assim mesmo que as pessoas aprendem, não apenas a ler e
escrever, mas é assim que se
aprende qualquer coisa: interagindo com o objeto de conhecimento.
Mas os métodos viraram palavrões. Ninguém podia mais falar
em método fônico, método silábico, método global, pois todos eles
caíram no purgatório, se não no
inferno. Isso foi uma conseqüência errônea dessa mudança de concepção de alfabetização. Por equí-
vocos e por inferências falsas, passou-se a ignorar ou a menosprezar
a especificidade da aquisição da
técnica da escrita. Codif icar e
decodificar viraram nomes feios.
“Ah, mas que absurdo! Aprender a
ler e escrever não é aprender a
codificar e decodificar”.
Aí é que está o erro. Ninguém
aprende a ler e a escrever se não
aprender relações entre fonemas e
grafemas – para codificar e para
decodificar. Isso é uma parte específica do processo de aprender a
ler e a escrever. Lingüisticamente,
ler e escrever é aprender a codificar e a decodificar.
Esse modo de ver as coisas
fez com que o processo de ensinar
a ler e escrever como técnica
ficasse desprestigiado. As alfabetizadoras que f icam pelejando
com os meninos para eles aprenderem a ler e escrever são vistas
como retrógradas e ultrapassadas.
Mas, na verdade, elas estão ensinando aquilo que é preciso ensinar: codificar e decodificar. As
alfabetizadoras podem até estar
ensinando pelos caminhos inadequados, mas isso precisa ser feito.
Nas concepções anteriores, as
alfabetizadoras tinham um método
– fosse esse ou aquele – que vinha
concretizado na chamada cartilha,
acompanhado de um manual do
professor (da alfabetizadora) dizendo detalhadamente o que ela
deveria fazer. Não estou discutindo a impropriedade dos fundamentos dessa cartilha, seja do
ponto de vista lingüístico, seja do
ponto de vista da própria escrita,
dos gêneros de escrita, do tipo de
texto etc. Mas era isso que as professoras tinham. Não tinham uma
teoria, porque aquele método era
tudo: se adotassem o silábico,
mantinham-se no silábico, pois
não tinham uma teoria lingüística
ou psicológica que justificasse ser
aquele o melhor método ou aquela
a melhor seqüência de aprendizado. A verdade era exclusivamente
o que dizia a cartilha. Havia um
método, mas não uma teoria. Hoje
acontece o contrário: todos têm
uma bela teoria construtivista da
alfabetização, mas não têm método. Se antigamente havia método
sem teoria, hoje temos uma teoria
sem método. E é preciso ter as
duas coisas: um método fundamentado numa teoria e uma teoria
que produza um método.
Existe também a falsa inferência de que, se for adotada uma teoria construtivista, não se pode ter
método, como se os dois fossem
incompatíveis. Ora, absurdo é não
ter método na educação. Educação
é, por definição, um processo dirigido a objetivos. Só vamos educar
os outros se quisermos que eles
fiquem diferentes, pois educar é
um processo de transformação das
v.9 n.52 • jul./ago. 2003 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 17A REINVENÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO
pessoas. Se existem objetivos,
temos de caminhar para eles e,
para isso, temos de saber qual é o
melhor caminho. Então, de qualquer teoria educacional tem de
derivar um método que dê um
caminho ao professor. É uma falsa
inferência achar que a teoria construtivista não pode ter método,
assim como é falso o pressuposto
de que a criança vai aprender a ler
e escrever só pelo convívio com
textos. O ambiente alfabetizador
não é suficiente.
Minha hipótese é a seguinte: o
construtivismo – aliás, o construtivismo constitui uma teoria mais
complexa do que a que está presente no senso comum – nos trouxe algo que não sabíamos. Permitiu-nos saber que os passos da
criança, em sua interação com a
escrita, são dados numa direção
que permite a ela descobrir que
escrever é registrar sons e não coisas. Então, a criança vai viver um
processo de descoberta: escrevemos em nossa língua portuguesa e
em outras línguas de alfabeto
fonético registrando o som das
palavras e não aquilo a que as
palavras se referem. A partir daí a
criança vai passar a escrever abstratamente, colocando no papel as
letras que ela conhece, numa tentativa de, realmente, escrever
“casa”, sem o recurso de utilizar
desenhos para dizer aquilo que
quer. Então, depois que a criança
passa pela fase silábica para registrar o som (o som que ela percebe
primeiro é a sílaba), ela vai perceber o som do fonema e chega o
momento em que ela se torna alfabética.
Esse foi um grande esclarecimento proporcionado pelo construtivismo. Só que, quando a
criança se torna alfabética, está na
hora de começar a entrar no processo de alfabetização, de aprender a ler e a escrever. Por quê? Porque quando se torna alfabética,
surge o problema da apropriação,
por parte da criança, do sistema
alfabético e do sistema ortográfico
de escrita, os quais são sistemas
convencionais constituídos de
regras que, em grande parte, não
têm fundamento lógico algum. E a
criança tem de aprender isso. Ela
tem de passar por um processo sistemático e progressivo de aprendizagem desse sistema. Nesse
campo, a grande colaboração é da
Lingüística, ao tratar das relações
1 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.9 n.52 • jul./ago. 2003entre sistema fonológico e sistema
ortográfico. Assim podemos determinar qual é o melhor caminho
para a criança se apropriar desses
sistemas e de suas relações.
É a isso que eu chamo da especificidade do processo de alfabetização. Não basta que a criança
esteja convivendo com muito
material escrito, é preciso orientá-
la sistemática e progressivamente
para que possa se apropriar do sistema de escrita. Isso é feito junto
com o letramento. Mas, em primeiro lugar, isso não é feito com
os textos 'acartilhados' – “a vaca
voa, ivo viu a uva” –, mas com
textos reais, com livros etc. Assim
é que se vai, a partir desse material
e sobre ele, desenvolver um processo sistemático de aprendizagem da leitura e da escrita.
Essa aprendizagem não está
acontecendo. Visito muitas escolas
e tenho visto o que está de fato
acontecendo. Além disso, venho
acompanhando nos testes –
SIMAVE, SAEB e outros – o fracasso, a falta de orientação sistemática da criança para se apropriar
do sistema de escrita. Quando digo
que se “desinventou” a alfabetiza-
ção, é a essa falta de especificidade da alfabetização que me refiro.
Um sistema convencional tem de
ser aprendido de forma sistemática. Desde que a criança tenha descoberto que o sistema é alfabético,
está apta a aprender esse sistema.
E acaba aprendendo porque, felizmente, criança é bastante esperta.
Mas ela leva muito mais tempo
para aprender, e enfrenta muito
mais dificuldades, se deixarmos
que o processo ocorra de maneira
aleatória e esparsa.
A Lingüística fornece elementos para se saber como devem ser
trabalhadas essas correspondências fonema/grafema com a crian-
ça. Quando isso não é observado,
o resultado é o fracasso em alfabetização, sob nova vestimenta. Não
estou dizendo que o fracasso de
agora seja novidade, pois sempre
tivemos fracassos em alfabetiza-
ção. Antes, a criança repetia a
mesma série por até quatro vezes e
havia o problema da evasão.
Agora, e talvez isso seja mais
grave, a criança chega à 4a série
analfabeta.
E por que talvez isso seja mais
grave? Porque, quando a criança
repetia o ano – pois tínhamos
métodos que não estavam fundamentados em teorias psicológicas,
psicolingüísticas nem lingüísticas
– ela não aprendia. Então ela repetia, mas, pelo menos, ficava claro
para ela que havia o “não sei”.
Agora, ela chega à 8a série, pensa
que tem um nível de Ensino Fundamental e não tem. Na minha
opinião, os alunos, os pais desses
alunos e a sociedade estão sendo
desrespeitados. Estamos iludindoos ao dizer que essas crianças e
esses jovens estão aprendendo a
ler e a escrever, quando na verdade não estão.
Tratemos agora da reinvenção
da alfabetização. À primeira vista,
essa reinvenção pode parecer uma
esperança, mas não é propriamente a solução do problema. Entendo-a como um movimento que
tenta recuperar a especificidade do
processo de alfabetização. Agora,
mais que nunca, temos que ficar
de olhos abertos para saber como
esse movimento está sendo feito e
em que direção ele está sendo
feito.
Considero que nós estamos
vivendo, na área de alfabetização,
um momento grave. Primeiro, por
causa do fracasso que aí está, gritante, diante de nós. Não é possí-
vel continuar dessa forma. Segundo, porque estão aparecendo tentativas, em princípio muito bem-vindas, de recuperar a especificidade
da alfabetização, mas é bom vermos qual caminho vão tomar.
Vamos lembrar a conhecida
“teoria da curvatura da vara”,
muito em voga nos anos 70. Se
v.9 n.52 • jul./ago. 2003 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 19A REINVENÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO
temos uma vara encurvada e queremos que ela fique reta, curvamos a vara para o lado contrário
para que ela fique depois na posi-
ção vertical. Isso é uma metáfora
para mostrar um movimento que
acontece com freqüência – se não
sempre – na educação. Fomos para
o lado do construtivismo, nada de
método etc, depois vimos que não
é nada disso. A tendência pode ser
curvar a vara para o outro lado, à
espera de que ela fique reta. Mas é
preciso saber se é isso mesmo o
que teria de ser feito. É preciso
saber o que significa esse “curvar
para o outro lado”. Pode significar
voltar ao antigo – e é o que tem
acontecido. As pessoas dizem:
“Ah isso não funciona, e os meninos não estão aprendendo a ler e a
escrever, então vou voltar àquele
meu velho método silábico, alfabetizar na cartilha, porque tudo
corria muito bem...”
Entretanto, voltar para o que já
foi superado não signif ica que
estamos avançando. Avançamos
quando acumulamos o que aprendemos com o passado, juntando a
ele as novidades que o presente
traz. Estamos no momento crítico
desse avanço. As pessoas estão
insatisfeitas com o construtivismo,
as denúncias já estão sendo feitas
e começam a surgir iniciativas no
sentido de corrigir essa situação.
Estamos na fase de reinvenção
da alfabetização. A revista Educa-
ção do ano passado, cuja chamada
de capa é Guerra de Letras, diz:
“Adversários do construtivismo
garantem que o antigo método
fônico é mais eficaz no processo
de alfabetização”. Esse é um sinal
que indica um momento de reinvenção da alfabetização. Um outro
sinal é um texto da revista Ensaio,
de abril de 2002, que traz um artigo com o seguinte título: “Construtivismo e alfabetização: um
casamento que não deu certo”.
O que considero preocupante,
porém, é que esse movimento está
indo em direção ao método fônico.
Por quê? Para corrigir os problemas que estamos enfrentando, será
que a solução é voltar a usar esse
método? Por que essa ênfase no
fônico? Quando falo em método
fônico, refiro-me àquele método
do 'casado', em que vinha uma
letra de um lado e casava com a
letra de outro lado, como aquelas
antigas cartilhas fônicas. Mas certamente não é disso que os especialistas estão falando: o que se
pretende é voltar a orientar as
crianças na construção das rela-
ções fonema/grafema.
Nos Estados Unidos houve
também o movimento do construtivismo, que lá chamavam de
whole language, ou seja, língua
total. Ele consistia em fazer o
aluno conviver de maneira total
com a língua. Essa foi a tradução
da orientação construtivista nos
Estados Unidos, e os resultados
foram os mesmos: as crianças não
estavam aprendendo a ler e escrever. O país se apavorou e o governo central encarregou um grupo
de cientistas de fazer um levantamento das pesquisas produzidas
até então no país a respeito da
alfabetização, na tentativa de se
descobrir como resolver o problema. O relatório, chamado de Reading Panel, ou “Painel da Leitura”,
analisou aproximadamente 1.800
pesquisas a respeito da alfabetiza-
ção feitas naquele país. Os autores
chegaram à conclusão de que as
crianças aprendem quando se trabalham sistematicamente as rela-
2 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.9 n.52 • jul./ago. 2003des

v.9 n.52 • jul./ago. 2003 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 21
Referências biblográficas
CAPOVILLA, Alessandra & CAPOVILLA,
Fernando. Alfabetização e método fônico. São Paulo: Mnemom, 2001
OLIVEIRA, João Batista Araújo. ABC da
alfabetização. Belo Horizonte: Alfaeducativa, 2002
SCLIAR-CABRAL, Leonor. Princípios do sistema alfabético de português do Brasil.
São Paulo: contexto, 2003.
Guia Prático de alfabetiza-
ção. São Paulo: Contexto, 2003.

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